Fugindo das Missas "juramentadas"



O Santo Cura D’Ars
Francis Trochu (Páginas 17 a 28)

Um Pastorzinho durante o Terror (1793 – 1794)

Em janeiro de 1791, época em que a Constituição Civil entrou a vigorar na comarca de Lion, João Maria ainda não tinha completado cinco anos. O P. Jaques Rey, cura de Dardilly durante 39 anos, cometera a fraqueza de prestar o juramento cismático. Mas, a dar-se crédito as tradições locais, esclarecido pelo exemplo do coadjutor e dos colegas vizinhos, que haviam recusado o tal juramento, não tardou muito em compreender e detestar sua falta. Permaneceu ainda por algum tempo na paróquia celebrando a missa numa casa particular, retirando-se depois para Lion. Mais tarde teve que exilar-se na Itália.

Se a saída do P. Rey não passou despercebida, Dardilly, contudo não foi perturbada ao ponto que se poderia esperar. A igreja continuou aberta, pois veio outro sacerdote, enviado pelo novo bispo de Lion, certo Lamourette, amigo de Mirabeau, nomeado pela Constituição, sem mandato de Roma, em lugar do venerável Mons. Marbeuf. O novo cura como também o novo bispo haviam prestado o juramento; mas como poderia suspeitar a boa gente de Dardi1ly que a Constituição Civil, da qual ignoravam, talvez, o próprio nome, pudesse conduzi-los ao cisma e a heresia? Nenhuma mudança aparente se havia operado, quer nas cerimônias, quer nos costumes paroquiais. As pessoas simples de coração assistiram por algum tempo sem escrúpulos a missa do "padre juramentado". Do mesmo modo procedeu com toda a boa fé Mateus Vianney, a esposa e seus filhos.

Entretanto abriram-se-lhes os olhos. Catarina, a mais velha das filhas, posto que naquela época não contasse mais de uma dúzia de anos, foi a primeira pressentir o perigo. No púlpito, o novo pároco nem sempre tratava dos mesmos assuntos como o P. Rey. Os termos cidadãos, civismo, constituição, pontilhavam suas prédicas. As vezes descambava em ataque contra seus predecessores. Cada vez mais a afluência à igreja era menos homogênea e apesar disso mais minguada do que outrora; pessoas mui piedosas não compareciam mais aos ofícios divinos. Onde, pois, ouviam missa nos dias de festa? Pelo contrário iam outros que nunca haviam frequentado o templo. Catarina sentiu certos receios e os manifestou à mãe. As coisas andavam nesse pé, quando os Vianney receberam a visita de um parente que residia em Ecully. "Ah! meus amigos, que fazeis?" perguntou-lhes ao ver que assistiam a missa do padre "juramentado". "Os bons sacerdotes recusaram o juramento, por isso são caçados, perseguidos, obrigados a fugir. Felizmente em Ecully, há alguns que ficaram entre nós. A estes é que vos deveis dirigir. O vosso novo cura separou-se da Igreja Católica com o seu juramento. Não é de modo algum vosso pastor e não o podeis seguir".

Como que fora de si por essa revelação, a mãe de João Maria não trepidou em interpelar o infeliz sacerdote e censurar-lhe a apostasia da verdadeira Igreja. Ao citar-lhe o Evangelho, onde está escrito que o ramo separado da videira será lançado ao fogo, levou-o a seguinte confissão: - "É verdade, senhora, a videira vale mais do que o sarmento". Maria Vianney deve ter explicado aos seus a falta daquele padre, pois conta-se que o pequeno João Maria "mostrou horror por esse pecado, começando dali por diante a esquivar-se do cura juramentado" . Desde então a igreja paroquial, relicário de tão suaves recordações, onde os pais se haviam casado e os filhos recebido o batismo, deixou de ser para a família Vianney lugar predileto de oração. Não tardou muito a ser fechada.

*

Chegaram, porém, os dias da sangrenta perseguição. Todo sacerdote que não prestasse juramento se expunha a ser encarcerado e executado, sem recurso possível, dentro de 24 horas. Quem os denunciasse receberia cem libras de recompensa. Quem, ao contrário, lhes desse asilo, seria deportado. Assim rezavam as leis de 24 de abril, 17 de setembro e 20 de outubro de 1793.

Apesar dessas ameaças terríveis, os sacerdotes fiéis andavam escondidos pelos arredores de Dardilly, e a casa dos Vianney ocultou a todos, um após outro. Em algumas ocasiões celebravam nela a santa missa. Foi um milagre o dono da casa não ter caído na suspeita de alguns jacobinos, pagando com a cabeça a sua santa audácia. Mas foi mesmo em Lion ou nos seus arrabaldes que os confessores da fé receberam, com mais frequência, generoso abrigo.

Mensageiros de confiança, enviados de Ecully, passavam em certos dias pelas casas das famílias católicas e lhes indicavam o esconderijo, onde na noite seguinte haveriam de ser celebrados os divinos mistérios. Os Vianney partiam, sem ruído, e andavam, muitas vezes, por longo tempo na escuridão da noite. João Maria, todo feliz por ir àquela festa, valentemente meneava as perninhas. "Os irmãos murmuravam de vez em quando, achando a distância demasiada, mas a mãe lhes dizia: "Imitem a João Maria que nunca se cansa".

Chegados ao lugar combinado, eram introduzidos num paiol ou quarto retirado, quase às escuras. Ao pé de pobre mesa, rezava um desconhecido cujo semblante fatigado esboçava suave sorriso. Depois dos cumprimentos, no canto mais escuro, detrás duma cortina, em voz baixa, o bom padre aconselhava, tranquilizava e absolvia as consciências. Não raro jovens noivos pediam que lhes abençoasse o matrimônio. Enfim, chegava a hora da missa, a missa tão desejada por grandes e pequenos. O padre dispunha sobre a mesa a pedra d'ara que trouxera consigo: o missal, cálice e numerosas hóstias, pois não seria só ele a comungar naquela noite. Revestia-se com paramentos amarrotados e desbotados. Depois, envolto por silêncio profundo, começava as preces litúrgicas, lntroibo ad altere Dei. Que unçãona voz, que recolhimento e que comoção a da assistência! Frequentemente misturavam-se as palavras santas os contínuos soluços do celebrante, Dir-se-ia uma missa nas catacumbas antes da prisão e do martírio. Como se comovia naqueles momentos inesquecíveis a alma do pequeno Vianney! De joelhos, entre a mãe e as irmãs, orava como um anjo e chorava por ouvir chorar. Além disso, com que atenção escutava, sem compreender nada, os graves ensinamentos daquele proscrito que arriscava a vida por amor às almas. Não teria sido naquelas reuniões noturnas que ouvira, pela primeira vez, o chamado ao sacerdócio?

1793. O Terror. Em Lion corria o sangue. Na Praça dos Terrores, a guilhotina não descansava. O proconsul Chalier havia inscrito 20 mil lioneses nas suas listas de proscrição. Uma revolta popular, chefiada por De Précy, fez subir ao cadafalso o próprio proscritor. Os católicos se limitavam a esperar, quando um exército da Convenção, sob o comando de Couthon e Dubois-Crance pôs sítio à cidade. De 8 de agosto a 9 de outubro, De Précy resistiu valentemente e só se rendeu pela fome. O pequeno de 7 anos não se podia dar conta exata de tais acontecimentos. Do campo da casa paterna, ouvia-se muito bem o ruído do combate. Dubois-Crance estava acampado nos arredores de Limonet, alguns quilômetros ao norte de Dardilly, e os soldados da Revolução passavam de contínuo pelo povoado. Mas os ruídos da guerra inquietavam menos ao piedoso menino do que o obstinado silêncio dos sinos. A igreja continuava fechada. Pelos caminhos havia só os pedestais dos cruzeiros: de Lion vieram homens para derrubar as cruzes." Em casa era necessário esconder cuidadosamente os crucifixos e as imagens religiosas. Somente nos verdadeiros fiéis, o santuário dos corações permanecia inviolado. João Maria não se desfez da sua pequena imagem da Virgem; guardou-a com mais precauções do que nunca, levando-a ao campo num bolsinho do casaco.

*
A primeira confissão, a primeira Comunhão (1794 - 1799)

Infelizmente a igreja continuava fechada. Houve certo momento de esperança com a morte de Robespierre. A perseguição perdeu muito de sua violência. O decreto do ventoso (3 ventoso, ano III, 21 de fevereiro de 1795) ab-rogava o culto do Ser Supremo, inaugurado pela Convenção e suprimia a Constituição Civil do Clero. Mas, depois destes meses (11 prairial, 30 de maio), novo decreto dispunha "que ninguém poderia desempenhar o ministério de algum culto religioso (nas igrejas que ainda poderiam ser abertas) a não ser que antes fizesse ato de submissão às leis da república". O velho cura de Dardilly, P. Rey, não havia aparecido, nem outro sacerdote não juramentado para tomar conta da paróquia. A família Vianney, que não simpatizava com nenhum padre sujeito ao decreto de 30 de maio, continuava a ouvir a missa em casas particulares. Até o fim de 1794 os padres católicos que permaneceram na comarca de Lion não chegavam a trinta. Apesar da pena de morte, asseguravam o serviço religioso, ainda que sem ordem nem continuidade, ora aqui, ora acolá, por não lhes ser possível fixar residência. A França convertera-se em tem de missão e mesmo em algo pior.

Não obstante, fazia-se sentir a necessidade duma ação organizada. Se Mons. De Marbeuf achou que era seu dever emigrar, o vigário geral, P. Linsolas, disfarçando-se, não abandonou a cidade. No começo de 1794, dividiu a paróquia em grupos paroquiais, e, em cada grupo, designou missionários, coadjuvados por catequistas leigos. Ecully ficou sendo um centro missionário, ao qual pertencia Dardilly. Conservam-se os nomes dos confessores da fé que exerceram naquela região tão heroico ministério. Foram, em primeiro lugar, dois sacerdotes sulpicianos, Pe. Royere Chaillon, antigos dirigentes do seminário maior; depois, um religioso, arrancado do seu convento pela tempestade revolucionária, o P. Carlos Balley, a quem teremos ocasião de ir conhecendo no decurso deste livro. Enfim, o P. Groboz:, cura da paróquia de Sainte- croix, que tendo fugido para a Itália transpôs novamente os Alpes para substituir, de algum modo a tantos colegas condenados à morte. Esses quatro padres viviam separados, dispersos em Ecully. Por motivo de precaução, adotaram um oficio que aliás exerciam bem pouco. Sabemos que o P. Bal1ey trabalhava de marceneiro e o P. Groboz de cozinheiro. As ferramentas e utensílios que carregavam davam-lhes certa aparência diante do povo eram explicação suficiente de suas idas e vindas. Não saíam quase a não ser ao cair da tarde, indo por caminhos esquivos ao lugar combinado, onde diziam missa.

Com que respeito João Maria contemplava no altar aqueles homens envelhecidos antes do tempo, que traziam no semblante os sinais de tantas fadigas e de tantas privações suportadas pelas almas! A eles mesmos chamou a atenção aquele menino de límpidos olhares que orava com tanto recolhimento e com tanto fervor. Certo dia, no ano de 1797, o Pe. Groboz passou por Dardilly e visitou a casa dos Vianney. Abençoou as crianças uma após outra. Perguntou a João Maria:

- Quantos anos têm?

- Onze anos.

- Desde quando não te confessas?

- Eu nunca me confessei, replicou todo admirado.

- Pois façamo-lo agora mesmo.

João Maria ficou a sós com o padre e começou a sua primeira confissão. "Sempre me lembro dela, dizia mais tarde; foi em casa ao pé do relógio". De que pecados se poderia ter acusado? É de crer que a perfeita candura daquela alma de criança maravilhou o sacerdote que Deus enviara para receber suas confidências. Foi para o sacerdote uma revelação. Era necessário para aquela criança instrução religiosa mais completa. Poderia encontrá-la com as damas catequistas instaladas secretamente em Ecully. Não custou muito ao P. Groboz convencer os pais. João Vianney não poderia, pois, ficar por alguns meses, em casa de Margarida Beluse, irmã de sua mãe, casada com Francisco Humbert?

Qualquer razão de força maior - provavelmente a obrigação de enviar ainda por algum tempo o menino a escola do Sr. Dumas, fez com que fosse adiado para o ano seguinte a execução desse desejo. Finalmente, pelos meados de maio de 1798, Maria Vianney levou para Ecully o seu predileto. Ficou combinado que a tia Margarida hospedaria o sobrinho, mas que os pais dariam a roupa e o alimento. Graças a esse arranjo, João Maria pode ver frequentemente na casa do Point-du-Jour - era esse o simpático nome da casa o pai, a mãe, irmãos e irmãs.

Duas religiosas de S. Carlos, as irmãs Combes e Deville, cujo convento não existia mais, encontraram refúgio em Dardilly. Os missionários confiaram-lhes a delicada tarefa de prepararem as crianças para a primeira comunhão.

João Maria foi instruído por elas juntamente com outros quinze.

O grande dia foi precedido por um retiro. Durante esse tempo o jovem Vianney parecia todo abismado em Deus. “Já naquela idade, disse mais tarde Fleury Véricel, de Dardilly, nós o olhávamos como a um santinho”. Rezava, rezava e não se comprazia em outra coisa. "Vede, diziam os colegas, dando-lhe um apelido que por certo provinha da fama de Mateus Vianney, vede o pequeno "Gorducho" que faz concorrência ao seu anjo da guarda".

Estamos no ano de 1799, "durante o segundo Terror" no tempo em que se corta o feno. A indecisão, que havia seguido à queda de Robespierre, não durou muito; os católicos ainda continuavam a ser perseguidos; os padres morriam às centenas; eram deportados para as Guianas, internados nos porões de Rochefort, de Ré ou de Oléron.

O S. Padre Pio VI, ancião de 82 anos, estava prisioneiro da Revolução. O Calendário republicano continuava a vigorar e a "década" substituía o domingo. As nossas belas festas religiosas, tão consoladoras para o povo, permaneciam proscritas e tentava-se substituí-las por ridículas cerimônias. Era ainda necessário esconder-se para orar a Deus. Em Ecully, a casa daquela que daqui em diante chamaremos Pingon, possuía vastas dependências. Foi esse o lugar escolhido pelos P.P. Groboz e Balley, para celebrarem a festa das crianças, festa celestial e esplendorosa, radiante de luz em tempos pacíficos, mas que o povo ignorava naquele fim de primavera. De manhãzinha os 16 meninos de Dardilly, que iam comungar, foram conduzidos separadamente, em trajes ordinários, para uma grande sala, cujas portas e janelas estavam bem fechadas, pois os meninos tinham cada um sua modesta vela e não convinha que fossem vistos de fora. Para maior precaução, puseram diante das janelas algumas carretas cheias de capim, e durante a cerimônia, para dissimular melhor, vários homens se ocupavam em descarregá-las. As mães levaram com muito cuidado, sob os chalés, os véus e os laços brancos. Cada qual aprontava o pr6prio filho para a visita divina. João Maria contava treze anos completos. Alma de um senso espiritual já mui apurado, podia bem apreciar o dom que acabava de receber. Tinha fome de Cristo e as tristes circunstâncias haviam tomado ainda mais distante aquele dia.

Recebeu a Eucaristia com o coração cheio de fé, desejo e grande amor: "Eu estava presente, contava Margarida Vianney. Meu irmão estava tão contente que não queria mais sair do lugar onde teve a felicidade de comungar pela primeira vez". Sem dúvida, havia muito, viviam no seu interior aquelas palavras que haveriam de sair tão ardentes de seus lábios sacerdotais: "Quando a gente comunga, sente algo de extraordinário... um gozo...uma suavidade...um bem-estar que corre por todo o corpo e o faz estremecer... somos obrigados a dizer como São João: Eis o Senhor!... Oh! meu Deus, que alegria para um cristão que se levantando da mesa sagrada vai com todo o céu no coração".

Mais tarde, não falava de sua primeira comunhão sem verter lágrimas de saudosa ternura. Passados 50 anos, mostrava aos meninos de Ars o modesto rosário de neo comungante, exortando-os a conservarem cuidadosamente os seus como lembrança preciosa.

No mesmo dia voltou com os pais para Dardil1y. Passara o tempo da infância e o tempo dos estudos. Ainda que crescesse lentamente, era forte para sua idade. Os trabalhos caseiros da granja e do campo já o reclamavam. Desde então embalsamou mais do que nunca a casa paterna com o perfume de suas virtudes. O aspecto franco, a atenciosa afabilidade que o levava a saudar cortesmente a todo mundo, acabaram por ganhar os corações de todos.

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